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A corruptibilidade humana: uma análise de "O enfermeiro" de Machado de Assis

Atualizado: 3 de fev. de 2023


Quem é o enfermeiro?


O enfermeiro, personagem do conto de Machado de Assis, era inicialmente um teólogo, ou melhor, um copista de estudos de teologia de um padre de Niterói, que foi indicado para o cargo de enfermeiro do coronel Felisberto que morava no interior.


O cuidador Procópio narra sua história em primeira pessoa, já no fim de sua vida, para um interlocutor desconhecido do leitor, pelo que se entende para ser publicada em um livro, mas atento à questão do decoro, ele coloca como condição que a obra só haveria de ser publicada depois de sua morte.


O enfermeiro afirmou que poderia contar sua vida inteira, mas não tinha tempo e ânimo, escolhe assim uma história que sentia ser inadequada para ser divulgada enquanto ele estivesse vivo. Talvez a personagem procure através dessa narrativa aliviar algum sentimento de culpa que restasse na sua consciência, pois já no início do conto pede que o leitor perdoe aquilo que lhe parecer mal.


Como a narrativa é construída?


Machado recorre ao tempo psicológico para escrever o conto, usa a técnica “in medias res” assim como no conto “A causa secreta”. Procópio no fim de sua vida usa a memória para retornar ao ano de 1860 onde acontecem os fatos narrados, sendo o tempo da enunciação diferente do tempo do acontecimento.


Em 1859, cansado de trabalhar como copista, Procópio aceita a indicação do padre de Niterói para ser cuidador de um coronel, entre os requisitos para a vaga estava ser uma pessoa entendida, discreta e paciente. Já o coronel era um homem insuportável, estúrdio, que nenhum enfermeiro aguentava trabalhar por muito tempo, que ao primeiro encontro com o novo cuidador já questiona se ele era “gatuno” e afirma que seu nome de tratamento: Valongo, não era nome de gente e propôs chamá-lo apenas por Procópio. O enfermeiro, que ainda era possuído pelo espírito de paciência, responde que o patrão poderia escolher o nome que fosse do seu agrado. Esse tipo de tratamento mostra a superioridade que a classe social do fazendeiro oferece quanto ao cuidador e a calma que habita inicialmente o segundo.


Numerologia bíblica na narrativa


O narrador diz que o bom convívio entre eles durou sete dias, mas não se pode dizer até que ponto esse número é real já que a história é contada muitos anos depois e seu antigo emprego era como copista de estudos de teologia e pode ter sido influenciado pelo simbolismo bíblico do número sete.


Entre agressões verbais, o cuidador passou três meses na casa procurando coragem para se despedir, até receber bengaladas do velho e sem sucesso tentar ir embora, o patrão se desculpa e pede para que ele continue no emprego. O rapaz fica, mas a sua característica paciência o abandona dando lugar a sentimentos como ódio e aversão. Cada vez mais entediado o enfermeiro se imagina voltando para a corte e gastando o dinheiro que havia juntado durante o terrível trabalho.


Resolvido de abandonar o cargo, o moço comunica ao médico e ao vigário sua decisão, esses entendem suas razões, mas pedem que ele espere por mais um mês até que encontrem um substituto.


Nesse interim houve um imprevisto, que seria o clímax da história. Procópio aproveitou que Felisberto dormia (depois de uma confusão em que foi atirada uma tigela de mingau que estava fria, apesar do cuidador reforçar na narrativa que fazia bem seu trabalho), para ler um romance de Visconde d' Arlincourt e acaba dormindo, acordando com os gritos do velho, que no meio de um delírio joga uma moringa que acerta a cabeça do jovem, que cego de raiva mata o agressor esganado.


Ao tomar consciência do seu ato, o sentimento de culpa dominou o enfermeiro, que passa a ter uma crise, sai do quarto para a sala e lá fica até o amanhecer, a ambientação durante toda a narrativa e principalmente nessa fase é dissimulada. A narrativa passa a ter uma duração de expansão onde cada minuto e barulho é sentido. O assassino amaldiçoa a hora que aceitou o trabalho, o padre de Niterói, o médico, o vigário e quer dividir o peso da culpa com essas outras personagens. Pensa em fugir, mas sabe que isso seria assinar uma confissão e desiste do plano. Prepara o defunto para o velório encobrindo as marcas que poderiam denunciar o crime, passa a ser dissimulado, teme ser descoberto a qualquer minuto. O sentimento de culpa é grande o bastante para mandar fazer uma missa mesmo dizendo não ser religioso, o que é contraditório pois ao matar o ancião, ele toma uma passagem bíblica sobre Caim ter matado seu irmão.


Novamente o narrador usa o prazo de sete dias como tempo para mudanças, dessa vez as coisas mudam para melhor, recebe uma carta dizendo que ele era o herdeiro universal. Pensa por três dias sobre o caso, decidindo no final doar a herança como forma de saldar a culpa. Com o passar dos dias surge o sentimento de que talvez não fosse de todo culpado, a luta fora uma fatalidade e o coronel já estava para morrer de qualquer forma. Na vila quando vai receber o dinheiro, o parabenizam por sua paciência e dedicação ao morto. Se restava algum sentimento de culpa ele desaparece frente ao dinheiro e uma mudança de humor é sentida, o antigo plano de distribuir o dinheiro é visto como uma afetação.


É como se Machado de Assis quisesse mostrar como é próprio do ser humano se manipular em prol do seu interesse, justificando o injustificável. O máximo que fez foi mandar construir um túmulo de mármore para o defunto, levantado por um napolitano que o narrador diz que esteve na região até 1866 indo segundo acredita, morrer no Paraguai, talvez na guerra que durou de 1864 a 1870.


Construção psicológica dos personagens


Há uma mudança do perfil psicológico dos personagens, Procópio que no início do conto é um rapaz bom e vítima do humor do coronel se torna irritado, dissimulado e assassino. Enquanto Felisberto que é narrado como mimado que só pensava em si, mostra ser grato deixando todo seu dinheiro para o rapaz que era seu companheiro.


É importante levar em conta que o narrador é protagonista e narra apenas aquilo que sente e tem acesso, sua confissão aponta um lado e esconde o outro, até que ponto ele não sabia o que estava no testamento? Teria sido a morte do Felisberto mesmo um acidente?


Machado de Assis mostra assim a dualidade da alma humana que não possui só bondade ou maldade e como a humanidade pode ser corrompida frente à interesses. Antônio Candido (1995) diz que esse gosto pelas sentenças morais nas obras machadianas é herdado dos franceses dos séculos clássicos e da leitura da bíblia, Bosi ressalta que mesmo apontando essas falhas Machado de Assis não julgava e condenava as personagens corrompidas, pois assim estaria julgando a si mesmo, visto que também era suscetível à corrupção causada pelo meio. Moura de Oliveira afirma em sua pesquisa:


"Se desde o mundo medieval com suas teses religiosas o homem foi visto como aquele que já traz o mal dentro de si, a partir de Rousseau, no segundo Discurso, esse mal é fruto da sociedade. O mal não é mais fruto do sentimento do amor de si, mas do amor próprio manifestado quando o homem vive na sociedade."

A civilização e a forma como o sistema econômico e social funciona justificaria os atos das personagens e dos seres humanos.


Ao final do conto o narrador pede ao interlocutor que como pagamento pela história lhe faça também um túmulo de mármore com o epitáfio do Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão consolados” como Procópio trabalhava como copista de textos teológicos seria difícil dizer que ele cometeu um erro trocando “ os aflitos” por “os que possuem”, parece mais uma ironia para confirmar a supremacia do dinheiro.




REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BOSI, Alfredo. A máscara e a fenda; editora: civilização brasileira s a; 1978


CANDIDO, Antônio. Esquema de Machado de Assis. In: Vários escritos. São Paulo:

Duas Cidades, 1970.


DE ASSIS, Machado. O Enfermeiro. In: Várias Histórias. Rio de Janeiro: B.L. Garnier,1896.


DE OLIVEIRA, Antônio Pedro Moura de Oliveira. Rousseau e sua teologia política. Salvador,2010.


1 comentário


Membro desconhecido
20 de jan. de 2023

Análise simplesmente incrível, onde desperta a leitura desse conto que descreve assuntos da moral e contradições humanas que marcam presença na sociedade modernal!


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