Entre páginas resgatadas e memórias apagadas de escritoras brasileiras
- Eduarda Rodrigues

- 29 de jun.
- 4 min de leitura
Entre 30/05/2025 e 27/06/2025, trabalhei como monitora em uma exposição que merece ser compartilhada. Mais do que uma mostra sobre literatura, foi um encontro com a história silenciada de mulheres que ousaram escrever em um país que, muitas vezes, as ensinou a calar.
Estou falando da maior exposição já realizada sobre literatura de autoria feminina no Brasil. Um projeto organizado pelo Instituto Peck Pinheiro em parceria com a Academia Paulista de Letras, Unesp e USP que reuniu mais de 60 autoras brasileiras dos séculos XVIII ao XX, em edições originais de livros, revistas e histórias de bastidor que não aparecem nos manuais escolares. Uma exposição que não só restitui memórias, mas denuncia o que se tentou apagar delas. E é por isso que um conceito atravessa toda a experiência: o memoricídio.
Memoricídio: quando a memória de escritoras brasileiras é apagada por escolha
Memoricídio é mais do que esquecimento. É a escolha política, social e cultural de apagar, omitir ou distorcer determinadas vozes da história. É o que aconteceu com Maria Firmina dos Reis, nossa primeira romancista negra, cujo livro Úrsula ficou desaparecido por mais de um século e que, até hoje, não tem uma imagem confirmada do seu rosto. É o que ocorre quando autoras precisam assinar com pseudônimos, anagramas ou iniciais para serem lidas. É quando suas obras são publicadas sem seus nomes ou, pior, atribuídas a homens.
O memoricídio é sutil, mas persistente. Ele se esconde nas bibliotecas que não compram livros escritos por mulheres, nos vestibulares que ignoram suas vozes, nas escolas que ensinam uma literatura feita, lida e comentada quase só por homens. E é justamente por isso que essa exposição existe: para lembrar. E, lembrando, resistir.
Algumas das autoras que resistiram escrevendo
Entre tantas mulheres incríveis que integram essa exposição, destaco aqui cinco autoras cujas histórias dizem muito sobre o que é escrever sendo mulher no Brasil, e sobre o que é ter sua existência questionada mesmo quando o talento grita nas páginas.
Elisa Lispector (1911–1989)
Irmã mais velha de Clarice Lispector, Elisa foi uma escritora completa, autora de romances, contos e memórias. Mas ao contrário da irmã, nunca teve seu nome celebrado com o mesmo entusiasmo pela crítica literária ou pelo mercado editorial. Seu livro No exílio (1948) é uma reflexão sobre a condição do imigrante judeu e do exílio feminino (emocional, social, existencial).
Elisa não estava à sombra de Clarice por falta de mérito. Estava porque, muitas vezes, as mulheres só cabem em uma categoria por vez: ou musa, ou gênio, ou irmã. O mercado, os leitores e a crítica escolheram uma Lispector para adorar. E esqueceram da outra.
Cassandra Rios (1932–2002)
Cassandra foi escândalo, vanguarda e coragem. Na década de 1950, ousou escrever sobre erotismo feminino, homossexualidade, fetiches e poder. Seus livros foram sistematicamente censurados pela ditadura militar. Ao todo, 36 de suas obras foram proibidas. E mesmo assim, ela foi uma das autoras mais vendidas do Brasil nos anos 1970.
Filha de espanhóis republicanos, Cassandra escrevia sobre os corpos das mulheres, suas dores e desejos, em um país que ainda se assustava com qualquer mulher que não se calasse. Por muito tempo, não foi aceita pela crítica, que a tratava como literatura “menor”. Mas Cassandra escrevia com furor e profundidade, desafiando tanto o conservadorismo quanto o machismo da literatura brasileira.
Ruth Guimarães (1920–2014)
Primeira mulher negra a publicar um romance na prestigiada Editora José Olympio, e também a primeira mulher negra a publicar depois da abolição, Ruth Guimarães foi uma gigante da literatura e do folclore brasileiro. Sua obra mais conhecida, Água Funda (1946), traz uma escrita que mistura lirismo, oralidade e uma crítica social afiada. Mas Ruth também foi uma das maiores pesquisadoras de cultura popular no Brasil, com vários livros sobre contos e mitos africanos, indígenas e rurais.
Por que ela não está nos livros didáticos com a mesma frequência que os modernistas ou os regionalistas? Porque o memoricídio ao lado do racismo opera silenciosamente. Ignora. Marginaliza. Deixa à margem mulheres que escrevem, mas que não cabem nos moldes de prestígio criados por homens brancos, do sul e do sudeste.
Ercília Nogueira Cobra (1891–?)
O nome pode não soar familiar, mas deveria. Ercília publicou dois livros de impacto imenso: Virgindade anti-higiênica (1924) e Virgindade inútil (1927). O primeiro foi censurado pela polícia; o segundo, bancado por ela mesma. Ambos são manifestos feministas que criticam a educação das mulheres, o patriarcado e a hipocrisia sexual da sociedade brasileira.
Após ser presa e torturada por suas ideias, Ercília se exilou no sul do Brasil, abriu um cabaré e desapareceu. Seu destino exato é incerto, como tantas mulheres que ousaram viver fora das regras impostas. Sua história é o retrato exato do que o memoricídio tenta fazer: transformar mulheres ousadas em notas de rodapé, em rumores, em fantasmas.
Carolina Maria de Jesus (1914–1977)
Talvez a mais conhecida da lista, mas ainda assim não lida como merece. Carolina escreveu um dos livros mais impactantes do século XX: Quarto de despejo (1960), um diário sobre a vida na favela, a fome e o racismo. Carolina foi celebrada quando seu livro vendeu mais de 100 mil cópias. Depois, esquecida. Seu nome foi reduzido a uma curiosidade. Seu estilo, criticado por não seguir os padrões da “boa literatura”. Mas o que ela fez foi abrir uma fenda: uma brecha pela qual a literatura periférica, negra e feminina pôde começar a existir no Brasil. Com a força das palavras. Com o sangue do cotidiano.
Por que isso importa agora?
Importa porque ainda temos um cânone literário que resiste em incluir mulheres. Porque o esquecimento das autoras brasileiras não é acidental, é um projeto de apagamento histórico. E recuperar essas vozes é um ato político. Um ato de amor. Um ato de justiça.
A exposição reuniu 65 autoras de diferentes épocas, estilos, regiões e histórias. Muitas delas ainda são pouco conhecidas, como Chrysanthème, Albertina Bertha, Francisca Júlia, Zalina Rolim, Delia, Ignez Sabino, Maria Lacerda de Moura, entre tantas outras.
Você pode acessar o PDF completo da exposição e conhecer essas mulheres incríveis, suas obras raras, suas imagens muitas vezes inéditas, suas lutas e suas potências.
Porque recuperar a memória dessas autoras não é apenas resgatar o passado. É garantir um futuro em que mais meninas possam escrever — e ser lidas.





Muito necessário! Estou começando um projeto - talvez para um possível Doutorado - sobre a escrita feminina é o trauma... foi ótimo receber esse material e ter estado na exposição tão bem acompanhada pela Eduarda. Abs