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Visita do censo

Atualizado: 17 de abr. de 2023

Hoje o pessoal do censo passou aqui em casa, há tempos que os vejo passando na viela. Aqui foi uma mulher que passou, pensei que a entrevista seria mais rápida, quanta pergunta, queriam saber até o que a gente gosta ou não de comer.


A dona da casa disse para eu não responder porque eles estão colhendo informações para tirarem a gente daqui, que o sonho da USP é colocar todo mundo aqui para fora. Mas eu tenho uma amiga que está trabalhando com eles e disse que isso é invenção do pessoal que não tem o que fazer, que o que eles querem é saber quantos somos e como vivemos para que assim seja possível realizar melhorias. Então decidi acreditar e fazer a bendita entrevista, mas meu Deus, quanta pergunta!


Eu não sabia se respondia ou olhava as crianças, não é fácil cuidar de três crianças sozinha. A mulher disse que tudo bem, que eu poderia responder no meu tempo. Tive medo que ela reparasse na bagunça da casa, sabia que um dia eles passariam aqui, só não sabia que seria hoje. Mas para ser sincera, qualquer dia estaria do mesmo jeito. É uma loucura, desde que eu acordo é um arrumar para as crianças bagunçarem. Coitadas, elas não fazem por mal, não têm espaço para brincarem. Com o dinheiro que tenho só consegui alugar essa casa de um cômodo, o esgoto passa aqui na porta, deixar as crianças brincarem na viela é pedir para pegarem uma doença. Não posso nem pensar em alguém aqui de casa ficar doente, o Hospital Universitário não atende mais, só em caso de muita urgência, se não estiver muito ruim eles falam para procurar um outro. Fico triste com essa situação, todos os meus filhos nasceram nesse hospital, é bom ter um lugar que atende em caso de doença. Espero que essa situação se resolva logo.


Respondi na entrevista que queria que aqui na São Remo tivesse uma creche e um lugar para as crianças brincarem. Aqui elas não têm nem calçada para brincar, quando não é viela são ruas que só tem espaço para os carros. Pouco tempo atrás uma criança foi atropelada, um menino de 7 anos, a mãe pediu para comprar cebola e quando ele estava atravessando a rua uma moto em alta velocidade bateu nele. Eu que moro quase no fim da viela consegui ouvir os gritos, foi de cortar o coração.


Essa questão da rua e pouco espaço para crianças brincarem é geral, mas algumas pessoas vivem bem aqui. Possuem casas bem espaçosas e bem mobiliadas, mas infelizmente esse não é meu caso. Por causa do pouco espaço, as minhas coisas vivem amontoadas, morro de medo de entrar ratos e passar nas roupas das crianças ou na comida. Aqui tem muito rato e barata, o jeito seria arranjar um gato, mas não tem espaço nem para mim e para as crianças. Na entrevista, a mulher perguntou sobre escorpião, nunca vi aqui. Só falta! Mais uma coisa para se preocupar.

A minha vizinha tem uma porquinha da índia por nome Mel, aliás, aqui em São Paulo chama porquinho da índia, onde eu nasci é chamado de preá, que ela cuida como se fosse uma filha. Acho engraçado o dinheiro que ela gasta. Ai de você se falar que ela não é mãe do bichinho. Vou te mostrar umas fotos que ela me mandou da mel, olha só que gracinha:



Imagem do arquivo pessoal de Bruna Gomes de Oliveira.

Depois que a mulher do censo foi embora, minha vizinha veio aqui reclamar que não fizeram perguntas sobre a porquinha. Que havia perguntas sobre gato, cachorro e passarinho, mas nenhuma sobre a Mel. Como se a Mel fosse menos que os cachorros e gatos. Eu ouvia as queixas e balançava a cabeça concordando, vou falar o quê?


Gosto dessa minha vizinha, ela tem a cabeça boa. Mora só ela e o marido e eles não querem ter filhos, dizendo ela que basta a Mel. Os dois trabalham muito, ele é terceirizado e trabalha como segurança na USP. Ela é manicure, trabalha em casa mesmo. A casa dela está sempre com clientes, até a mulher da entrevista pegou o número de telefone para fazer a unha depois.


Falando da entrevista, tinha umas perguntas estranhas sobre ser cisgênero ou transgênero, precisei que ela me explicasse. Uma outra era sobre a cor da minha pele, nunca tinha parado para pensar nisso, sou da mesma cor da mulher que fez a entrevista. Perguntei qual era a cor dela, ela disse que não poderia interferir, mas na dúvida coloquei parda. Na minha certidão de nascimento tem branca, mas não sou branca nem aqui nem na China.


Eram muitas perguntas, mas fiquei com uma na cabeça: “Tem interesse de voltar a estudar?” Respondi que não, como estudar com três crianças pequenas? Mas quero sim, preciso terminar os estudos para conseguir dar uma vida melhor para meus filhos. Talvez eu procure um EJA mais para frente, seria bom se pudesse levar as crianças porque não tenho ninguém de confiança para poder deixar. Quero que meus filhos cresçam e tenham um bom futuro.


Não sei se você chegou a ver, mas no final da viela tem um portão branco. Passando por ele tem 3 casas, é de Dona Maria, mora ela e os quatro filhos. Coitada, nenhum dos filhos consegue emprego e o mais velho é alcoólatra. Esse filho já foi internado algumas vezes, mas não resolveu muito. Gosto muito de Dona Maria, ela é muito católica, daquelas praticantes, e sabe benzer como ninguém. Qualquer sintoma de mau-olhado eu já peço o benzimento dela.


Dona Maria realmente é um amor de pessoa, mesmo com todos os problemas você precisa ver como ela recebeu a mulher do censo. Parecia até que eram da mesma família. Ah, Dona Maria... Espero que as coisas melhorem na vida dela e de todos nós.

Estou falando que não tenho um minuto de paz, as crianças já estão chorando! Vou ver o que aconteceu...






No vídeo abaixo falo como foi o processo de escrita desse texto a partir da minha experiência no Projeto Democracia, Artes e Saberes Plurais. Confira!






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